Ir ao espaço cultural "Pouso da Palavra", ainda que sem o dono das palavras pousadas por ali, soou como um encontro com as poesias que por ali voavam (ou pousavam - não é possível saber ao certo se pousam ou se voam... há um movimento contínuo de voos e pousos e pousos e voos e assim as letras seguem a brincar com quem aí está).
A casa amarela (como a flor de Arabela)* continha um poeta, ou talvez , o poeta continha uma casa amarela... disso também não se sabe... O certo é que era ali uma das moradas do poeta Damário da Cruz. A casa localizada em Cachoeira e que não poderia ter melhor localização: de costas para o rio (uma quadra), em frente à praça do fórum, vê a vida desfilar frente à sua porta!
Na ausência prematura do poeta (não seriam eternos, os poetas?), as coisas estão intactas, no escritório, o telefone continua fora do gancho... As fotos e as poesias espalhadas pela casa fazem troça, fazem carinho, fazem alegria, fazem o riso, a ânsia, o desejo, o festejo, a surpresa para quem passa por eles... Uma frase, um olhar, uma imagem... a casa é um convite para recitar, ainda que baixinho, palavras-poesias... Transito entre santos e orixás, santa e revólver, radiola e cd, o moderno e o antigo, o sagrado e o profano, o mar e a cidade, a luz e penumbra se equilibram no pequeno espaço... O sol se adona da entrada da porta... Cosme e Damião saboreiam com olhar feliz suas guloseimas... São Jorge no meio da sala lança seu olhar por todos os lados... Salve Jorge!... O jardim verdejante esconde surpresas! A chuva torna as cores mais vivas... Meu pé molhado festeja a descoberta dos objetos escondidos pelo caminho... Os olhos buscam os sem fins de detalhes que a casa esconde... Por entre as coisas que nos rodeiam, algumas traz saudades de infância: um taximetro, disco vinil, calendário antigo.... A casa é caixa de surpresa (e caixa de poesia)...
Saimos, eu, Licinha, Regi, Dôra, Rose, Raquel e Ana como visitas que acabaram de estar com velho (ou novo) amigo! Tem-se a certeza de que há um centro de cultura cada vez mais a se fincar, e a tristeza de que no momento a vida poética está suspensa no ar... Que caminho esse pássaro tomará? Quem sabe Arabela possa regar tal qual a flor, a casa de mesma cor? Mas se "Cada pássaro sabe a rota do retorno / Cada pássaro sabe a rota de si / Cada pássaro na rota sabe-se pássaro" a casa sabe muito bem para onde ir...
E nós fomos embora encantadas com tantas palavras pousadas, com tantas imagens capturadas, com tanta presença do poeta no Pouso onde a imaginação voa...
E com o "Gran Finale", que se estende pela fachada da casa e brinca ao vento, Damário nos deixa sua breve despedida da vida ("que só vale a vida"):
Avise aos amigos
Que preparo o
último verso
A vida dura
menos que um poema
E no alvorecer mais próximo
Saio de cena
Sim, ele saiu de cena, mas o cenário do poeta continua ali, em Cachoeira, quase como se nada tivesse acontecido (não fosse o vazio na mesa de trabalho e o silêncio no lugar)... já não falei que os poetas são eternos?!
*Refiro-me ao poema Flor Amarela de Cecília Meireles